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No início da década de 60, o mundo capitalista sofreu transformações relevantes com a dispersão das atividades econômicas que se voltaram também para os países do terceiro mundo, caracterizando um desmantelamento de antigos centros de poder localizados em países de primeiro mundo. Este processo se concretizou com o avanço da informática e das telecomunicações que incorporou uma multiplicidade de centros financeiros em uma rede mundial de transações. O crescente interesse pelo tema agrário e pelo desenvolvimento industrial na Geografia se dá nesta época e só realça a motivação pela abordagem da Geografia Humana, especialmente pelos chamados estudos da população.
O presente ensaio tem como objetivo comparar as reflexões de dois autores da área de Geografia Humana sobre a dicotomia rural-urbano. O primeiro trabalho a ser considerado é o do geógrafo francês Pierre George, que enfatizou nos seus estudos as questões ligadas à indústria, às cidades, ao comércio, aos transportes, ao consumo e seus impactos na sociedade, estabelecendo relações significativas entre a indústria e a agricultura. Há que se lembrar que, em geral a Geografia econômica/clássica privilegiava o estudo da agricultura em detrimento ao da indústria. Este autor mostra que a indústria é o setor que comanda a vida econômica moderna, dando maior ênfase ao seu estudo e colocando em segundo plano o da agricultura. Pierre George considera a Geografia como uma “ciência que estuda a dinâmica do espaço humanizado”. Parte do princípio de que os fenômenos estudados pela Geografia devem ser apreendidos “em suas relações com a presença e a ação das coletividades humanas”.
Um primeiro olhar sobre o ponto de vista de George pode dar a entender que o autor não focaliza, nos seus estudos, os chamados espaços não humanizados do globo. Porém, um olhar mais detido sobre sua teoria revela que não é exatamente assim. Tomemos, primeiramente, o conceito de espaço humanizado que, para este autor equivale à noção de ecúmeno, usada por Max Sorre. Ecúmenos seriam áreas da Terra ocupadas pela ação humana. Para George os espaços humanizados possuem fronteiras imprecisas, já que o espaço se coloca como plano através do qual o tempo se efetiva. É importante notar que, desta forma, já naquela época, o autor detectou o fenômeno da ausência de delimitação clara entre rural e urbano, ainda que os conceba como espaços diferenciados.
Em segundo lugar, para George, a história do homem é marcada por incontáveis experiências de penetração e conquista de espaços que outrora pareciam inacessíveis e “vetados” pela natureza. Assim, a Geografia deve ter uma intervenção no sentido de desenvolver a região, ou seja, os espaços naturais, que ele considera “atrasados”, devem ser civilizados. É neste contexto de domínio da natureza pelo homem que entra a questão da técnica. Segundo George, as técnicas criam tanto a necessidade de penetração e instalação nesses espaços, quanto os meios para realizar essa apropriação. Como se vê, a lógica que move a análise de Pierre George é a concepção de civilização e civilizatório, a diferença entre civilizado e incivilizado.
Em que pese o fato de que George tenha produzido suas reflexões na década de 60 - quando o desenvolvimento urbano era mais incipiente, a industrialização tomava novos rumos, produzindo impactos na sociedade – é interessante examinar suas idéias considerando o atual cenário de um mundo globalizado.
O que deve ser destacado é o fato de que a dicotomia civilizado e incivilizado de George conduz a um problema que é o de ver como necessariamente positiva a idéia de civilização, a noção de que o “atrasado” é o que precisa modernizar-se, por ser considerado “moralmente inferior” ao moderno. Em outras palavras, o que ele está dizendo é que o natural é atrasado e deve ser incorporado ao âmbito do que é civilização. De fato, para George, o tempo da modernização necessariamente é o tempo da industrialização e sem o desenvolvimento da indústria é impossível modernizar e melhorar a agricultura. Sendo assim, o urbano é associado ao moderno e as áreas não urbanas (como a zona rural, por exemplo) são vistas como não modernas.
É inegável que há aí uma distinção que poderia ser entendida como preconceituosa, justificada por uma perspectiva de um juízo moral: o urbano, o moderno é visto como algo essencialmente bom e civilizado; já o rural, o atrasado como algo negativo, que necessita ser modernizado.
Vamos agora nos debruçar sobre o estudo de uma autora que produziu sua obra mais recentemente. Trata- se de Lecione (2003), para quem a clássica relação cidade-campo está ultrapassada atualmente, devido aos novos fenômenos do mundo globalizado, com intensificação do capital nas atividades agrícolas. Segundo Lecione, atualmente, “o processo de urbanização do espaço imprime ao território características que até então eram exclusivas da zona urbana”, ou seja, ele não se restringe às zonas urbanas, atinge todas as áreas, em maior ou menor escala.
Apesar de serem escritas em diferentes épocas, as análises de George e Lecione partilham do mesmo ponto de vista no que diz respeito aos espaços humanizados: eles possuem fronteiras imprecisas. Por outro lado, não se pode dizer que concordem totalmente. George revela uma concepção que poderia ser considerada preconceituosa ao classificar o espaço rural como algo atrasado, que necessita ser modernizado e defender que os problemas do moderno sejam superados pelo próprio moderno. Já Lecione, embora assuma a imprecisão das fronteiras entre rural e urbano, realiza uma crítica ao processo de modernização do espaço rural, na medida em que ele acarreta a destruição não só das práticas sociais, mas das identidades dos lugares, que ficam sujeitos aos códigos do urbano.
Confrontando as duas análises, percebemos que George atrela-se, quase que totalmente, ao contexto econômico do processo, desconsiderando o lado social e humano no processo de modernização dos espaços. Ao contrário de Lecione, que se preocupa com a perda de identidade dos lugares, a história e a origem das pessoas, destruídas pelo processo de modernização.
Do meu ponto de vista, penso que cabe perguntar até que ponto um território é considerado modernizado ou “atrasado” atualmente, quando se considera o crescente aumento do acesso às técnicas e à tecnologia. Não é incomum hoje em dia que os habitantes da zona rural tenham acesso à tecnologia, sem abandonar, entretanto, o cotidiano de uma vida rural. Por outro lado, Lecione lembra que nos territórios considerados modernizados há fragmentos de territórios não modernizados, já que nem todos tem acesso às tecnologias.
Cabe ressaltar que Pierre George foi um dos primeiros autores a perceber que a modernização do espaço – que Lecione chama de globalização do espaço - é produtora de raridades e de escassez. Ele cita como exemplo o próprio espaço, que passa a ser objeto de especulação nos centros urbanos. Parece que a condição financeira é a porta de entrada para o acesso às técnicas e ao espaço atualmente, independentemente do território ser modernizado ou não modernizado, e que é possível modernizar-se, sem descaracterizar-se, apesar das dificuldades e do movimento de massificação dos valores na sociedade como um todo.
Para finalizar, é importante ressaltar que Pierre George é uma das principais influências do pensamento geográfico contemporâneo, inclusive no Brasil, país cujos efeitos da rápida modernização - que o inseriu no espaço global da civilização industrial - incluem os desequilíbrios urbanos e os problemas ambientais.
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